Confissão de Augsburgo

Confissão de Augsburgo

INTRODUÇÃO

No dia 21 de janeiro de 1530, o Imperador Carlos V convocou uma dieta imperial a reunir-se em abril seguinte, em Augsburgo, Alemanha. Ele desejava ter uma frente unida nas suas operações militares contra os turcos, e isso parecia exigir um fim na desunião religiosa que tinha sido introduzida como resultado da Reforma. Conseqüentemente, convidou os príncipes e representantes das cidades livres do Império para discutir as diferenças religiosas na futura dieta, na esperança de superá-las e restaurar a unidade. De acordo com o convite, o Eleitor da Saxônia pediu aos seus teólogos em Wittenberg que preparassem um relato sobre as crenças e práticas nas igrejas da sua terra. Uma vez que uma exposição de doutrinas, conhecida com o nome de Artigos de Schwabach, tinha sido preparada no verão de 1529, tudo o que parecia ser necessário agora era uma exposição adicional a respeito das mudanças práticas introduzidas nas igrejas da Saxônia. Tal exposição foi, por isso, preparada por teólogos de Wittenberg e, visto que foi aprovada num encontro em Torgau, no fim de março de 1530, é chamada comumente de Artigos de Torgau.

Juntamente com outros documentos, os Artigos de Schwabach e Torgau foram levados para Augsburgo. Lá foi decidido fazer uma declaração luterana conjunta em vez de uma simples declaração saxônica, a explanação a ser apresentada ao Imperador. Circunstâncias também exigiram que se deixasse claro na declaração que os luteranos não fossem reunidos ao acaso com os demais oponentes de Roma. Outras considerações indicaram que seria desejável enfatizar mais a harmonia com Roma do que as diferenças. Todos estes fatores contribuiram para determinar as características do documento que estava sendo preparado por Felipe Melanchthon. Os Artigos de Schwabach tornaram-se a base para a primeira parte do que veio a ser chamado de Confissão de Augsburgo, e os Artigos de Torgau tornaram-se a sua segunda parte. Lutero, que não estava presente em Augsburgo, foi consultado por correspondência, mas as emendas e revisões continuaram sendo feitas até a véspera da apresentação formal ao imperador, em 25 de junho de 1530. Assinada por sete príncipes e pelos representantes de duas cidades livres, a Confissão imediatamente adquiriu importância peculiar como uma declaração pública de fé.

De acordo com as instruções do imperador, os textos das confissões foram apresentados em alemão e latim. A leitura diante da Dieta foi feita do texto alemão, que é, por isso, tido como mais oficial. Infelizmente, nem o texto alemão nem o latino existem nas formas exatas em que foram apresentados. De qualquer maneira, mais de cinqüenta cópias que datam de 1530 foram encontradas, incluindo esboços que representam vários estágios no preparo antes de 25 de junho, bem como cópias com uma variedade de novas mudanças no vocabulário feitas após 25 de junho. Estas versões têm sido objeto de extensos estudos críticos da parte de muitos estudiosos, e um texto latino e outro alemão foram reconstruídos e podem ser considerados próximos, embora não idênticos, aos documentos apresentados ao Imperador. Existem diferenças entre os dois textos. Segue a versão latina.

PREFÁCIO(A)

(Tradução do texto latino do prefácio)

Invictíssimo Imperador(B), César Augusto, Senhor clementíssimo. Porquanto Vossa Majestade Imperial convocou uma dieta imperial para Augsburgo, destinada a deliberar sobre esforços bélicos contra o turco, adversário atrocíssimo, hereditário e antigo do nome e da religião cristãos, isto é, sobre como se possa resistir ao seu furor e ataques com preparação bélica durável e permanente; e depois também quanto às dissensões com respeito a nossa santa religião e fé cristã, e a fim de que neste assunto da religião as opiniões e sentenças das partes, presentes umas às outras, possam ser ouvidas, entendidas e ponderadas entre nós, com mútua caridade, brandura e mansidão, para que, corrigido o que tem sido tratado incorretamente(C) nos escritos de um e outro lado, possam essas coisas ser compostas e reduzidas a uma só verdade simples e concórdia cristã, de forma tal, que, quanto ao mais(D), seja praticada e mantida por nós uma só religião pura e verdadeira; e para que assim como estamos e militamos sob um mesmo Cristo, possamos da mesma forma viver em uma só igreja cristã, em unidade e concórdia; e porque nós, os abaixo assinados, assim como os outros eleitores, príncipes e ordens, fomos chamados à supramencionada dieta, prontamente viemos a Augsburgo, a fim de nos sujeitarmos obedientes ao mandato imperial, e, queremos dizê-lo sem intuito de jactância, estivemos entre os primeiros a chegar.

Como, entretanto, Vossa Majestade Imperial também aqui em Augsburgo, no próprio início desta dieta(E), fez que, entre outras coisas, se indicasse aos eleitores, aos príncipes e a outras ordens do Império que as diversas ordens do Império, por força do edito imperial, deveriam propor e submeter suas opiniões e juízos nas línguas alemã e latina, e como quarta-feira passada(F), após deliberação, se respondeu, em seguida, a Vossa Majestade Imperial que de nossa parte submeteríamos os artigos de nossa Confissão sexta-feira próxima(G), por isso, em obediência à vontade de Vossa Majestade Imperial, oferecemos, nesta matéria da religião, a Confissão de nossos pregadores e de nós mesmos, tal qual eles, haurindo da Sagrada Escritura e da pura palavra de Deus, ensinaram(H) essa doutrina até hoje entre nós.

Agora, se os demais eleitores, príncipes e ordens do Império igualmente apresentarem, de conformidade com a precitada indicação da Majestade Imperial, em escritos latinos e germânicos, suas opiniões na questão religiosa, estamos dispostos, com a devida obediência a Vossa Majestade Imperial, como nosso Senhor clementíssimo, a conferir, amigavelmente, com os precitados príncipes, nossos amigos, e com as ordens, sobre vias idôneas e toleráveis, a fim de que cheguemos a um acordo, até onde tal se possa fazer honestamente, e, discutida a questão entre nós, dessa maneira, com base nos propostos escritos de ambas as partes, pacificamente, sem contenda odiosa, possa a dissensão, com a ajuda de Deus, ser dirimida e haja retorno a uma só verdadeira e concorde religião. Assim como todos estamos e militamos(I) sob o mesmo Cristo, devemos outrossim confessar um só Cristo, segundo o teor do edito de Vossa Majestade Imperial, e todas as coisas devem ser conduzidas em acordo com a verdade de Deus, e pedimos a Deus com ardentíssimas preces que auxilie esta causa e dê a paz.

Se, porém, no que diz respeito aos demais eleitores, príncipes e ordens, que constituem a outra parte, esse tratamento da causa não se processar segundo o teor do edito de Vossa Majestade Imperial, e ficar sem fruto, nós outros em todo o caso deixamos o testemunho de que nada retemos que de algum modo possa conduzir a que se efetue uma concórdia cristã possível de fazer-se com Deus e de boa consciência, como também Vossa Majestade Imperial, e bem assim os demais eleitores e ordens do Império, e quantos forem movidos por sincero amor e zelo pela religião, quantos derem ouvidos a essa causa com equanimidade, dignar-se-ão, bondosamente, a reconhecer e entender dessa Confissão nossa e dos nossos.

Como Vossa Majestade Imperial também bondosamente significou, não uma, senão muitas vezes, aos eleitores, príncipes e ordens do Império, e na Dieta de Espira, celebrada em 1526 A.D., fez que fosse lido e proclamado, de acordo com a forma dada e prescrita de Vossa imperial instrução, que Vossa Majestade Imperial, nesse assunto de religião, por certas razões, que então foram alegadas, não queria decidir, mas queria empenhar-se junto ao Romano Pontífice a favor da reunião de um concílio, conforme também essa questão foi mais amplamente exposta, faz um ano, na próxima-passada Dieta de Espira, onde Vossa Majestade Imperial, por intermédio do Governante Fernando(J), rei da Boêmia e da Hungria, clemente amigo e senhor nosso, e além disso através do embaixador e dos comissários imperiais, fez que, entre outras coisas, fosse apresentado, segundo a instrução, o seguinte: que Vossa Majestade Imperial notara e ponderara a resolução do representante de Vossa Majestade Imperial no Império, bem como do presidente e dos conselheiros do regime imperial, e dos legados de outras ordens que se reuniram em Ratisbona(K), concernente à reunião de um concílio geral, e que Vossa Majestade Imperial, outrossim, julgara que seria útil reunir um concílio, e que Vossa Majestade Imperial não duvidou de que seria possível induzir o Pontífice Romano a celebrar um concílio geral, porquanto as questões que então eram tratadas entre Vossa Majestade Imperial e o Romano Pontífice avizinhavam-se de uma concórdia e reconciliação cristã. Por isso Vossa Majestade Imperial bondosamente significava que se empenharia no sentido de que o Romano Pontífice consentisse, o quanto antes possível, em congregar tal concílio, através da emissão de cartas.

Se, pois, o resultado for tal, que essas dissensões não sejam compostas amigavelmente entre nós e a outra parte, oferecemos aqui, de superabundância, em toda obediência perante Vossa Majestade Imperial, que haveremos de comparecer e defender a causa em tal concílio geral, cristão e livre, para cuja reunião sempre tem havido, em razão de gravíssimas deliberações, em todas as convenções imperiais celebradas durante os anos de reinado de Vossa Majestade Imperial, magno consenso da parte dos eleitores, príncipes e ordens do Império. Para esse concílio e para Vossa Majestade Imperial mesmo já anteriormente apelamos da maneira devida e na forma da lei, nessa questão, incontestavelmente a maior e mais grave. A essa apelo continuamos a aderir. E não intentamos nem podemos abandoná-lo, por este ou outro documento, a menos que a causa fosse amigavelmente ouvida e levada a uma concórdia cristã, de acôrdo com o teor da citação imperial. Quanto a isso, também aqui testificamos publicamente.

Notas:

A - O texto alemão do prefácio é de pena de Gregor Brück, chanceler do Eleitorado Saxônio. Justus Jonas é o autor da tradução latina do prefácio. É essa tradução latina que vertemos em português. Enquanto diminui o número de pessoas capazes de ler, com inteiro proveito, os originais alemão e latino das Confissões Luteranas, cresce o número daqueles que entendem inglês. A edição inglesa de T. G. Tappert (The Book of Concord, Fortress Press, Philadelphia, 1959), que traz a tradução do prefácio germânico, é livro de fácil aquisição. Favorecerá, por isso, a número crescente de leitores o fato de havermos traduzido o prefácio latino para a edição portuguesa.

B - Carlos V, 1500 - 1558.

C - No original, secus. Texto alemão: nicht recht. Na Concordia Triglotta, em que a tradução do prefácio da Confissão de Augsburgo se baseia no texto latino, lê-se: "in a different manner." O advérbio secus tem ambas as acepções, mas já que o prefácio latino é tradução do prefácio germânico, damos preferência ao nicht recht.

D - No original, de cetero. Concordia Triglotta traduz "for the future". Assim também Leif Grane e Bernd Moeller ( Die Confessio Augustana, p. 13): "in Zukunft". Cremos que Justus Jonas teria escrito in ceterum houvesse sua intenção sido a de dizer "para o futuro", se bem que o contexto parece sugerir a tradução "para o futuro" como a melhor.

E - No dia 20 de junho de 1530.

F - No dia 22 de junho.

G - Dia 24 de junho. Concordia Triglotta (p. 40), por engano, traduz proxima sexta feria (sic) com "on next Wednesday". A apresentação foi transferida para sábado, 25 de junho.

H - Ou transmitiram. No original: tradiderint.

I - Adotamos a variante sumus et militamus. Cf. BSLK.

J - A Arquiduque Fernando da Áustria, desde 1526 rei da Hungria e da Boêmia, irmão do imperador.

K - Regensburg. 1527. Compareceu número muito reduzido de pessoas, e a dieta terminou sem resultados.

A CONFISSÃO DE AUGSBURGO

Artigo 1: DE DEUS

Em primeiro lugar, ensina-se e mantém-se, unanimemente, de acordo com o decreto do Concílio de Nicéia,(1) que há uma só essência (2) divina, que é chamada Deus e verdadeiramente é Deus. E todavia há três pessoas nesta única essência divina, igualmente poderosas, igualmente eternas, Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, todas três uma única essência divina, eterna, indivisa, infinita, de incomensurável poder, sabedoria e bondade, um só criador e conservador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E com a palavra persona se entende não uma parte, não uma propriedade em outro, mas aquilo que subsiste por si mesmo, conforme os Pais usaram esse termo nessa questão.(3)

Rejeitam-se, por isso, todas as heresias que são contrárias a esse artigo, como os maniqueus,(4) que afirmaram a existência de dois deuses, um bom e um mau; também os valentinianos,(5) arianos,(6) eunomianos,(7) maometanos8 e todas as similares, também os samosatenos,(9) os antigos e os novos,(10) que afirmam uma só pessoa e sofismam acerca do Verbo e do Espírito Santo, dizendo não serem pessoas distintas, porém que Verbo significa palavra ou voz física, e que o Espírito Santo é movimento criado em suas criaturas.

1. Vid. Nota em I, Símbolo Niceno.

2. No original alemão: Wesen. Texto latino: essentia.

3 "Aquilo que subsiste por si mesmo" = hupóstasis, termo usado na igreja antiga conta o modalismo, segundo o qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três modos ou manifestações do Deus único. Cf. em CR 4,38 as autoridades citadas por Melanchthon no Colóquio de Worms de 1541 para CA I. Em definitiones multarum appellationum, quarum in Ecclesia usus est (Melanchthons Werke in Auswahl, vol. II,2, 1953, ed. Hans Engelland, p. 782s.). Melanchthon define "pessoa" assim: Persona est substantia, individua, intelligens, incommunicabillis, non sustentata in alia natura. Sic loquitur Ecclesia et vocabulo personae hoc modo utitur. Graeci hupóstasin et huphistámenon dixerunt, id est, subsistens. Leonardo Hutter (Loci communes theologici, locus I, cap. I, q. III, prop. III) descreve a elaboração do conceito de pessoa congruente com o mistério da Trindade. Sobre o uso do conceito de subsistência (hupóstasis) para determinar o conceito de pessoa (reduzindo este ao sentido formal, único que lhe convém na doutrina da Trindade) vid., p. ex., Werner Elert, Der christliche Glaube, 3ª ed., de Ernst Kinder, 1956, p. 220.

4. Adeptos da heresia de Manes, do século III d. C. Combinação do dualismo persa de Zoroastro com elementos gnósticos e cristãos.

5. Gnósticos do século II.

6. Do nome do heresiarca Ário, teólogo de Alexandria (ca. 270-336), que negava a consubstanciabilidade do Filho com o Pai (Cristo, ainda que anterior ao mundo, é, contudo, um poiema de Deus). O Concílio de Nicéia (Bitínia, Ásia Menor, 325, também chamado I Concílio de Nicéia – o II reuniu-se em 787) condenou essa doutrina. Os arianos dividiram-se em "homoi-usianos" (homoios e ousia), também chamados semi-arianos, ou seminicenos (o Filho é de substância similar à do Pai, i. e., não idêntica nem diferente. P. ex., Basílio de Ancira, o líder), "homoianos" (o Filho é semelhante ao Pai. V. g., Acácio de Cesaréia, de onde os acacianos, mais tarde liderados por Eudóxio) e "an-homoianos", os arianos radicais, chamados de arianos propriamente ditos (o Filho em tudo é dessemelhante do Pai. P. ex., Eunômio). O Concílio de Nicéia definiu-se pelo "homoousios" (o Pai e o Filho são de substância idêntica). Daí o termo heterousianos para designar os sectários do arianismo. Semi-ariano, inicialmente sinônimo de "homoi-usiano", mais além passou a ser sinônimo de macedoniano e pneumatômaco, porque muitos "homoi-usianos", ainda que tinham chegado a aceitar uma formula "homo-usiana" quanto ao Pai e ao Filho, haviam aderido a Macedônio (patriarca de Constantinopla, deposto pelo Sínodo de Constantinopla em 360), e diziam que o Espírito Santo não é homoousios com o Pai e o Filho, de onde o nome de peneumatômacos, que significa "difamadores do Espírito".

7. De Eunômio, falecido cerca de 393, e que chegou a ser a figura principal do arianismo radical.

8. Como negadores da Trindade.

9. Os samosatenos, também chamados paulianistas, foram sectários de Paulo de Samôsata, bispo de Antioquia. Em 269 foi deposto da sé antioquiana. Lutero e Melanchthon o condenaram porque negava a personalidade do Logos. Há quem julgue duvidosa a inclusão de Paulo de Samôsata entre os adeptos do monarquianismo dinamista (o Filho é simplesmente um poder de Deus, o divino repousava sobre o homem Jesus como um poder, dúnamis). Também há quem pensa que binitarismo dinamista seria descrição mais exata (porque falavam da existência do Pai e do Filho, ou Espírito, dentro da Divindade, sem ênfase especial sobre a unidade e a relação entre ambos). Outros preferem chamá-los de trinitários econômicos (nome dos adeptos da teoria de que o Filho e o Espírito não são hipóstases plenas, mas têm o status de economias ou dispensações funcionais do Deus único extrapoladas para as finalidades da criação e da redenção.

10. Texto latino: neotericos (novos, modernos). Com samosatenos novos a Confissão de Augsburgo mira aos primeiros espiritualistas antitrinitários da época da Reforma (V. g. João Campano: o Espírito Santo é apenas operação ou efeito de Deus e do Cristo)

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